Fonte: G1
Pesquisa mostra que em 2021, pela primeira vez na história, mais da metade dos programas de pós-graduação em universidades públicas no Brasil já tinham algum tipo de ação afirmativa. Há reserva de vagas, oportunidades extras ou bônus nas notas de pretos, pardos, indígenas, quilombolas, mães, LGBTQIA+ e egressos de escola pública, entre outros grupos.
“Eu, negro e de família pobre, estou no doutorado de uma universidade pública. Meus binóculos foram trocados: vejo agora um horizonte diferente”, diz Wescrey Pereira, de 33 anos.
Ele é cotista na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) desde o mestrado, em 2016, quando a instituição implementou a política de ações afirmativas na pós-graduação.
Desde então, o número de alunos beneficiados nesta etapa de ensino aumentou significativamente. Em 2021, pela primeira vez na história, mais da metade dos cursos de mestrado e doutorado de universidades públicas do Brasil tiveram cotas ou vagas extras reservadas para pretos, pardos, indígenas, quilombolas, transexuais, mães, pessoas com deficiência ou estudantes de baixa renda.
É o que mostra o estudo da pesquisadora Anna Venturini, publicado no “Observatório de ações afirmativas na pós-graduação”, com base na análise de todos os editais de seleção publicados pelas instituições de ensino. Dos 2.817 programas existentes, 54,3% apresentaram ações afirmativas no processo seletivo no ano passado – basicamente o dobro do registrado em 2018 (26,8%). Não existem levantamentos relativos ao número de alunos.
Aos poucos, a academia deixa de ser “a torre de marfim isolada da sociedade”, como define Luiz Augusto Campos, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
Segundo ele, as ações afirmativas são ainda mais importantes se levarmos em conta que “boa parte da produção científica do Brasil vem da pós-graduação”.
“Se só tiver homem branco de classe média alta lá, sobre o que serão as pesquisas? Seria um apartheid cognitivo”, diz.
De fato, desde que mais grupos sociais passaram a entrar nos programas de mestrado e doutorado, a diversidade de trabalhos passou a chamar a atenção dos professores. É uma percepção qualitativa, já que não há, até o momento, estatísticas que dimensionem a mudança nas pautas.
“Temas de dissertações e teses estão trazendo problemáticas que até então não apareciam, como as de equidade de gênero e de raça”, conta o professor Gustavo Monaco, presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP.
Nesta reportagem, você verá:
- quais as explicações para o aumento no número de ações afirmativas;
- como funcionam as cotas na pós-graduação;
- que obstáculos os cotistas ainda enfrentam (como bolsas de estudo congeladas e exigência de idiomas estrangeiros).
Por que cada vez mais universidades adotam cotas na pós-graduação?
Segundo especialistas ouvidos pelo g1, há duas explicações principais para a ampliação das políticas de cotas.
A primeira é uma portaria publicada pelo Ministério da Educação (MEC) em 2016, orientando todas as universidades federais a enviarem propostas de inclusão de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na pós-graduação.
“Apesar de não ter sido algo obrigatório, foi entendido assim por muitas instituições. A medida acabou tendo um papel indutor muito importante”, explica Venturini.
O segundo fator decisivo é o maior número de alunos pretos, pardos e de baixa renda na graduação, graças à Lei de Cotas, que completa 10 anos. A Universidade de São Paulo, por exemplo, vem aumentando a porcentagem de vagas reservadas para egressos de escola pública: em 2021, eles já formavam a maioria dos alunos ingressantes na instituição.
Quanto maior for a participação destes grupos nas faculdades, maior será o número de potenciais alunos de mestrado e doutorado.
“Eles colocam uma pressão maior para entrarem na pós, por meio de movimentos sociais e estudantis”, afirma Venturini.
Há ainda uma outra hipótese para a ampliação das ações afirmativas.
Em junho de 2020, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, prestes a deixar o cargo, revogou a portaria de 2016 e acabou com o incentivo às políticas de cotas na pós-graduação. A decisão dele, no entanto, foi cancelada pelo MEC dias depois.
A repercussão nas redes sociais foi grande e fez com que o assunto voltasse a ser discutido e, na visão de especialistas, pode ter estimulado a ampliação de cotas em programas de graduação.
“Weintraub chamou atenção para um tema que estava meio adormecido, e o tiro saiu pela culatra”, diz Campos, da UERJ.
Como funcionam as ações afirmativas na pós?
Segundo a pesquisa de Venturini, dos 1.531 programas de pós-graduação com ações afirmativas, 73% aplicam exclusivamente o sistema de cotas,ou seja, reservam uma parte das vagas para determinados grupos sociais e/ou étnico/raciais.
Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, desde agosto de 2021, 25% das vagas são para pretos, pardos, indígenas e quilombolas.
Já na Universidade Federal Fluminense (UFF), o mestrado em ensino ofertou 41 vagas no primeiro semestre de 2022, sendo 8 para ampla concorrência e 33 para cotas (pessoas com deficiência, autodeclarados LGBTQIA+, professores de escola pública, indígenas, quilombolas, estrangeiros, estudantes de baixa renda e mulheres com filhos de até 14 anos).
Há ainda outras duas modalidades de ação afirmativa: a concessão de um bônus na nota do candidato em alguma etapa do processo seletivo e a criação de vagas suplementares (ou seja, extras) para incluir determinado grupo.
O pró-reitor de Ações Afirmativas da Universidade Estadual da Bahia, Marcelo Pinto, conta que a instituição mistura dois tipos de políticas: reserva 40% das oportunidades para negros e cria 5 vagas a mais para cada outro grupo (indígenas, ciganos, quilombolas, pessoas com deficiência e transexuais).
As dificuldades
Embora as ações afirmativas tenham crescido no mestrado e no doutorado nos últimos anos, ainda há obstáculos para garantir a entrada e a permanência destes grupos nos cursos de pós-graduação.
- Domínio de idiomas
A piauiense Mariana Lucena, de 34 anos, concluiu recentemente o mestrado na Universidade Federal do Pará, por meio de ações afirmativas.
“Tive muita dificuldade na prova de proficiência em língua estrangeira. Era eliminatória; fiquei muito angustiada. Fora que depois, durante o curso, os professores passavam vários textos em inglês. Eu e outras pessoas negras ficávamos constrangidas, porque estávamos ao lado de gente que estudou nas melhores escolas privadas de Belém”, conta.
A pesquisadora Anna Venturini explica que a Capes exige que todos os alunos (cotistas e não cotistas) terminem os cursos dominando idiomas estrangeiros: um no mestrado e dois no doutorado.
“Assim, eles poderão internacionalizar as pesquisas e publicar artigos em revistas de outros países. O problema é que alguns programas exigem fluência em outra língua logo no processo seletivo, em uma prova eliminatória”, diz.
Nasce aí um obstáculo para quem não teve condições financeiras de fazer cursos de inglês fora da escola. Em geral, na rede pública brasileira, falta padronização nas aulas de idiomas estrangeiros, os materiais didáticos são insuficientes, a carga horária é baixa, e os professores não recebem a formação adequada, como mostrou um estudo divulgado pelo British Council em 2015.
Diante disso, as instituições de ensino superior vêm tentando corrigir a defasagem: a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), por exemplo, montou um curso especial de línguas estrangeiras para os alunos cotistas, cobrando mensalidades de valor simbólico.
Na Universidade de São Paulo (USP), a Faculdade de Direito aceita alunos que saibam ao menos uma língua, além do português, no mestrado, e duas no doutorado, entre inglês, francês, alemão e italiano. Mas, para não excluir os candidatos de ação afirmativa, foi implementada uma mudança na avaliação.
“Antigamente, só ia para a segunda fase quem tivesse tirado no mínimo 7 na prova de idiomas. Agora, os alunos que tirarem entre 5 e 7 podem avançar e ganhar a chance de refazer a prova um ano depois”, explica Monaco. “Neste período, eles recebem apoio do centro acadêmico para melhorar.”
- Bolsas de estudo
Huri Paz, de 25 anos, está no 1º ano do mestrado de sociologia da USP, após ser aprovado na política de cotas para autodeclarados pardos. Ele gostaria de se dedicar exclusivamente à sua pesquisa, mas o valor da bolsa de auxílio é inferior ao que ele ganha trabalhando na Afro-Cebrap (núcleo de pesquisa racial).
“É uma pena, porque as ações afirmativas cresceram justamente quando o orçamento caiu. Não tem como largar meu emprego para ganhar R$ 1.500 de bolsa”, diz. “O jeito é ter aula só à noite, quando já estou exausto.”
Atualmente, a Capes e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pagam os tais R$ 1.500 para quem se dedicar (na maioria das vezes, exclusivamente) ao mestrado e R$ 2.200 para o doutorado. Há 9 anos, não já reajustes nos benefícios.
“Fica difícil se manter em cidades grandes, como São Paulo e Rio. O aluno acaba precisando escolher entre ajudar a família ou aceitar uma bolsa de valor pouco atrativo”, explica Anna Venturini.
“O trabalho do pesquisador no Brasil é muito precarizado”, complementa Campos.
Ao g1, a Capes afirmou que “reconhece como legítimo o pleito dos pós-graduandos no sentido de aumentar os valores pagos pelas bolsas de estudos de mestrado, doutorado e pós-doutorado”. Escreveu também que “determinou estudos de viabilidade e de compatibilidade orçamentária e financeira com o objetivo de aumentar os valores das bolsas, […] levando em conta o contexto de responsabilidade fiscal”.
Até a última atualização desta reportagem, o CNPq não havia se pronunciado.
- Resistência na área de exatas
A pesquisa do Observatório de ações afirmativas na pós-graduação mostra que determinadas áreas do conhecimento têm porcentagens menores de programas com cotas, bônus ou vagas suplementares.
“Os programas dessas áreas mais duras [como engenharia] têm mais dificuldade de ver qual o benefício da diversidade”, diz Venturini. “Mas estudos mostram que os ganhos são para a ciência como um todo.”
Campos dá um exemplo: “Na UFRJ, alunos estavam estudando estruturas de engenharia de favela, que são muito mais complexas, pela densidade demográfica. “As contribuições [de turmas mais plurais] são percebidas nas exatas também.”
Nada indica que haja queda no desempenho das universidades
Um ponto comum na discussão sobre políticas de cotas gira em torno da qualidade das universidades. Será que, aceitando alunos de outros grupos sociais, como os egressos de escolas públicas, haverá uma queda de nível no desempenho das turmas?
Por enquanto, não há dados que permitam concluir se as notas na pós-graduação e o ritmo de publicação de artigos subiram ou caíram depois da adoção das ações afirmativas.
Nas graduações, nas quais as cotas existem há mais tempo, pesquisas mostram que não houve comprometimento na excelência dos cursos. Em 2020, a Unesp, por exemplo, coletou dados de 30 mil alunos (cotistas e não cotistas) e concluiu que não houve diferenças significativas no desempenho acadêmico dos dois grupos.
Monaco, da Faculdade de Direito da USP, também reforça que, na graduação, nenhum prejuízo foi constatado.
“Os alunos [cotistas], em geral, são muito dedicados e têm excelente desempenho”, conta. “Não temos dados da pós, mas sou um entusiasta das ações afirmativas. Vejo com bons olhos.”
Mas, se já há cotas nas faculdades, haveria necessidade de prolongar o benefício para o mestrado e o doutorado? Anna Venturini explica que a questão foi levantada por professores e pró-reitores ao longo de sua pesquisa.
“Não dá para acreditarmos que todo mundo sai equalizado da graduação. As oportunidades continuam diferentes. Em geral, os cotistas precisam trabalhar e estudar, então terão mais dificuldade para se dedicar às atividades acadêmicas.”
Mariana, mestre pela UFPA, diz que ainda ainda há um abismo.
“No meu mestrado, os textos em inglês eram xerocados. Eu precisava digitar tudo para traduzir no computador”, conta. “A situação da desigualdade na pós melhorou nos últimos anos, mas sempre como resultado de muita luta.”