Vladmir Oliveira da Silveira Pós-Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa CatarinaUFSC.  E-mail: vladmir@aus.com.br

Patricia Martinez Almeida Mestra em Direito pela Universidade Nove de JulhoUNINOVE. E-mail: profa.civil@gmail.com

Editora Científica:

Prof. Dra. Mariana Ribeiro Santiago

DOI – 10.5585/rtj.v4i2.252

REVISTA THESIS JURIS

 

RESUMO

O presente estudo sobre empresas e direitos humanos tem por objetivo analisar a mutação do papel da empresa na sociedade de consumo e as responsabilidades advindas desse novo plexo de relações globalmente intermediadas pelas empresas transnacionais. Para tanto, será utilizado o método de abordagem hipotético dedutivo, com base em pesquisa bibliográfica e documental. Como hipótese inicial será adotada a premissa que tais modificações justificam o dever de observância aos direitos humanos pelas empresas, tal como proposto pela Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, e, como consequência, com a internalização dos custos necessários à prevenção e proteção de tais direitos, em razão do novo adensamento da dignidade humana e do processo de funcionalização do direito.

PALAVRAS CHAVE: Direito Internacional dos Direitos Humanos; funcionalização do Direito; empresas e direitos humanos.

ABSTRACT

The present study on business and human rights aims analyze the mutation of the company’s role in the consumer society and the resulting responsibilities of these relations globally mediated by transnational businesses. For this purpose, will be used the method of hypothetical deductive approach , based on documentary and bibliographical research. As an initial hypothesis will be adopted the premise that such changes justifies the duty to respect human rights by businesses, as proposed by the United Nations Human Rights Council, and, consequently, with the internalisation of necessary costs relating to the prevention and protection of such rights, due to the new densification of human dignity and the process of the functionalization of law.

KEYWORDS: International Human Rights Law; functionalization of law; businesses and human rights.

INTRODUÇÃO

A expansão da industrialização resultou na alteração na moldura do consumo, pois com a produção em larga escala foi preciso criar uma cultura voltada a disseminação dos produtos e, assim, atender as novas expectativas do industrialismo capitalista que se estendia pelo mundo – ocidental, ao menos. E, logo, o consumo ganha contornos distintos, passando do consumo de subsistência ao de acúmulo e de constante renovação.

No pós-Segunda Guerra Mundial, as empresas começam um movimento de deslocamento de suas atividades a diversos países, e, com o término da guerra fria, têm maior alcance para circulação de seus produtos com a queda da última barreira ao capitalismo global – o muro de Berlim – e o modelo socialista de economia do leste europeu.

Neste sentido, as empresas passam a deslocar não somente suas atividades aos demais países, mas também a sua forma de gerir tais atividades, por intermédio de negociações com os países de acolhida. Na qual se pactuam o dever de ingerência do Estado receptor na administração empresarial, assim como, a percepção de benefícios pela instalação de filiais no território estatal (relativização de direitos trabalhistas, tributação mais favorável com benefícios fiscais) e, em contrapartida, ofertando manutenção de postos de trabalho e circulação de riqueza.

Dito de outra maneira há uma transnacionalização das empresas que negociam seus pactos globais com Estados em desenvolvimento e até mesmo com os sem desenvolvimento, relativizando direitos humanos e deveres nacionais em troca de uma promessa de desenvolvimento econômico. O que, com efeito, foi potencializado com a expansão das novas tecnologias da informação e comunicação para o comércio global.

Desta forma, o presente estudo sobre empresas, direitos humanos     e novas tecnologias (NTs) tem por finalidade analisar a mutação do papel da empresa na nova sociedade e as responsabilidades advindas desse novo plexo de relações globalmente intermediadas pelas novas tecnologias. Notadamente, pela prevalência dos Direitos Humanos, a proteção dos direitos sociais e dos difusos – proteção trabalhista, aos consumidores, meio ambiente – e a função social da empresa, ou seja, a sua relevância na manutenção dos postos de trabalho, arrecadação fiscal e circulação de riquezas.

Com esse objetivo, serão estudados no item 1 os princípios orientadores sobre a empresa e os direitos humanos relatados em 2011 por John Ruggie, como resultado de sua pesquisa para o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) no contexto do crescimento da empresa no século XX, com a deslocalização de suas atividades e na relativização do poder estatal na desterritorialização do controle dos Estados sobre as atividades transnacionais.

No item 2 será avaliada a necessidade de implementação de tais princípios para a proteção ao ser humano na sociedade mundial e as novas responsabilidades das empresas (Mercado) e dos Estados para a promoção e proteção dos direitos humanos e os instrumentos para o ressarcimento das violações à dignidade humana.

Como hipótese inicial será adotada a premissa de que as alterações no paradigma da contratação global justificam o dever de observância dos direitos humanos pelas empresas e os parâmetros para proteger, respeitar e reparar, tal como proposto pela Conselho de Direitos Humanos da ONU. E, como consequência, a responsabilidade pela internalização dos custos necessários à prevenção e proteção de tais direitos pelas empresas, em razão do novo adensamento da dignidade humana e o processo de funcionalização do direito. Para tanto, a pesquisa pautar- se-a pelo método de abordagem hipotético dedutivo, com base em pesquisa bibliográfica e documental.

  1. PARÂMETROS DA ONU PARA AS EMPRESAS E OS DIREITOS HUMANOS

Se o Leviatã foi o símbolo da política moderna, então a posição moral dos ‘poderes nacionais’ e das superpotências será reproduzida no futuro pela imagem de Lemuel Gulliver, que após um inocente cochilo se vê amarrado a um sem-número de finíssimas correntes (BECK, 1999, pp. 133-134).

Desde o relatório de desenvolvimento humano global de 2000 do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD) é que se destaca a relevância da ação dos atores não estatais para o fomento e proteção no desenvolvimento do ser humano na sociedade globalizada 1.

Segundo Beck (1999, p. 17), o novo modelo econômico que se instaura com a ruptura da última contenção ao capitalismo global, no mercado sem fronteiras das empresas transnacionais, acarreta uma alteração no modelo da economia nacional com a deslocalização da empresas para além das fronteiras do país de sua sede e a desterritorialização do controle estatal2 dos países que passam a recepcionar as empresas originárias de outras localidades.

Assim, as grandes empresas começaram a instalar suas sedes nos mercados de consumo e a dirigir suas instalações, postos de trabalhos e produção nos países de acolhida de acordo com seus interesses, com base em critérios de conveniência e oportunidade das vantagens ofertadas, quer sejam pelo mercado de trabalho, capital ou fiscal pelos Estados que passaram a negociar seus pactos globais3.“Os empresários descobriram a pedra do reino. Eis aqui a nova fórmula mágica: capitalismo sem trabalho mais capitalismo sem impostos” (BECK, 1999,p. 20).

Diante desse novo plexo de relação de poder, em virtude das relações de opressão e das violação a direitos humanos, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de seu Conselho de Direitos Humanos, encomendou um estudo sobre o novo papel das empresas e dos Estados para a proteção, promoção e reparação aos direitos inerentes ao ser humano, que se consolidou no relatório final elaborado por John Ruggie sobre “Empresas, direitos humanos” e os parâmetros da ONU para proteger, respeitar e reparar.

Segundo os novos parâmetros da ONU (2011), aos Estados compete o dever de proteger os direitos humanos de possíveis violações cometidas em seu território ou sob sua jurisdição, por intermédio de leis, mecanismos de fiscalização e punição àqueles que desrespeitarem o piso mínimo de direitos resguardados aos seres humanos e isso, com efeito, se aplica às empresas, especialmente àquelas transnacionais ou as que possam causar danos transfronteiriços.

No caso das empresas transnacionais 4, nos termos do relatório elaborado pela ONU, depreende-se que tanto os Estados de origem quanto acolhida possuem responsabilidade pela promoção e defesa dos direitos humanos reconhecidos universalmente, em razão do desequilíbrio contratual que se verifica entre o poder econômico das grandes empresas e as díspares necessidades dos Estados em desenvolvimento ou não desenvolvidos que se rendem às regras impostas por aquelas para a instalação de suas filiais nestes.

A grande problemática entre o comércio transnacional e a proteção dos direitos humanos reside na prática de relativização das normas estatais de proteção aos direitos humanos consagrados nacionalmente para a criar ambiente atrativo para o estabelecimento das grandes empresas globais 5.

Isso porque, referidas empresas propagam um discurso de possíveis benefícios aos Estados de acolhida, tais como criação de diversos postos de trabalho, circulação de riqueza e aquecimento da economia nacional que acarretam na negociações que incluem limitações à direitos humanos.

Assim, em decorrência de tais negociações (pactos globais) os Estados em menor grau de desenvolvimento ou não desenvolvidos foram os principais pontos buscados no globo terrestre pelas empresas transnacionais, diante do maior poder de barganha exercido por estas em detrimento daqueles, pois as necessidades econômicas e a realidade de tais Estados possibilitam maior relativização dos direitos humanos protegidos em tais localidades, viabilizando maior auferimento de lucro pelas empresas que neles se instalam.

Neste sentido, o relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU prevê que a responsabilidade de fiscalização para a proteção e consequente reparação de danos causados aos direitos humanos por tais atividades será atribuída ao Estado de origem da empresa transgressora, uma vez que a indivisibilidade, interdependência e o inter-relacionamento dos direitos humanos, enquanto núcleo mínimo para a proteção da dignidade humana, reclamam uma proteção global e interdependente contra possíveis opressões aos seus postulados 6.

Avaliando a responsabilidade dos Estados na proteção dos direitos humanos percebe- se que os mecanismos a serem utilizados por eles perpassam aos deveres de legiferação, fiscalização e coerção. Antes disso, é estimulado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU a criação de políticas de prevenção, tais como a educação empresarial, por meio de assessoramento para o fomento das atividades empresarias que respeitem ou promovam os direitos humanos.

Outros instrumentos também podem ser viabilizados, tais como as sanções premiais àquelas empresas que atendam à todas as políticas de prevenção e promoção aos direitos humanos comprovadamente, por meio de relatórios periódicos das atividades empresariais e o impacto (positivo ou negativo) aos direitos humanos conseguidos por intermédio de auditorias (due diligence) 7.

Referidos prêmios ou benefícios às empresas por observância ou cumprimento de suas responsabilidades assumidas e àquelas imperativas (jus cogens), inerentes a atividade empresarial, em relação a promoção e proteção aos direitos humanos podem ser pactuados entre o país de acolhida e a empresas (contratos de investimento) ou, ainda, entre estes e o país de origem (tratados), para reforçar o compromisso e atendendo aos ditames dos princípios orientadores da empresa e direitos humanos.

Com relação ao dever de respeitar os direitos humanos, imputados às empresas transnacionais pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, cumpre esclarecer que tal responsabilidade empresarial se limita ao respeito aqueles direitos humanos contidos na Carta Internacional de direitos humanos, ou seja, aos direitos contidos na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), nos pactos internacionais sobre direitos humanos, quais sejam Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e das regras de proteção aos direitos humanos contidos nas declarações da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O dever de respeito aos direitos humanos pelas empresas abrange a abstenção de violação aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, por meio de prevenção ou mitigação dos impactos negativos de suas atividades ou da circulação de seus produtos e serviços, além da responsabilidade por possíveis danos por elas causados. E, isso se aplica a todas as empresas independente de sua atividade, estrutura ou nacionalidade.

Avaliando os princípios operacionais para o dever de respeito aos direitos humanos pelas empresas denota-se que no processo de funcionalização do direito8 tal dever tem natureza hibrida contratual e imperativa, pois se pretende que as empresas assumam compromisso político para as responsabilidades oriundas dos princípios orientadores em comento. Além de processos de (1) auditorias: para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas dos impactos de suas atividades e o compromisso firmado; (2) incorporação de tais compromissos na política interna da empresa: para vincular tanto administradores quanto aos demais empregados; e, (3) processos de reparação aos danos causados por elas ou que, inclusive, tenham contribuído.

Nesse sentido, o compromisso político firmado entre empresas transnacionais e Estados de acolhida devem prever tanto benefícios às empresas por adoção de mecanismos que promovam direitos humanos e prêmios pelo alcance das metas previamente estipuladas, por parte dos Estados de um lado, quanto a internalização dos custos da promoção aos direitos humanos, a prevenção e mitigação dos impactos negativos de sua atividade pelas empresas – para os estudos prévios e também das auditorias periódicas, assim como da implementação das estratégias para execução das metas estipulas – de outro.

Para identificar os possíveis impactos negativos de suas atividades, as empresas devem se valer de estudos quantitativos e qualitativos, com recurso de especialistas que possam averiguar o grau e a extensão dos danos em virtude dos grupos afetados ou a serem afetados, da natureza e volume da atividade e seus reflexos aos direitos humanos reconhecidos na esfera internacional.

E, apesar da natureza contratual do compromisso a ser assumido pelas empresas, em qualquer situação, deverão observar as leis de proteção aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, pois universalmente exigíveis, logo, jus cogens – direito implícito e inderrogável.

Além disso, deverão buscar mecanismos e recursos de sopesamento, que viabilizem a implementação dos princípios e dos direitos humanos quando confrontados com exigências conflitantes. E, levar em conta os riscos de provocar ou contribuir para violações aos referidos direitos humanos na estipulação de suas atividades como questão de estratégia empresarial em qualquer local que operem ou venham a operar.

A terceira base proposta pelo Conselho de Direitos Humanos versa sobre os mecanismos de   reparação às violações ocasionadas pela atividade   das empresas transnacionais, como parte do dever de proteção atribuído aos Estados e que deve ser instituído tanto por meios judiciais, administrativos, legislativos e meios autocompositivos que viabilizem a efetiva reparação às vítimas, quer seja pela empresa violadora, quer seja pelo país ao qual ela esteja sob jurisdição.

Da mesma maneira que devem as empresas instituir processos de reparação eficaz aos danos acarretados aos direitos humanos, em decorrência de suas atividades de forma direta ou que para eles tenham as empresas contribuído. Tais mecanismos não estatais de eficácia devem ser, segundo o princípio 31, (1) legítimos, para gerar a confiança necessária em sua efetividade; (2) acessível, a todos os interessados; (3) previsível, no sentido de transparência nas fases do procedimento para que possa ser utilizado; (4) equitativo, para assegurar às vítimas um acesso razoável às fontes de informação, assim como seu assessoramento; (5) transparente; (6) compatível com o direto, ou seja, assegurar os resultados esperados para a efetiva reparação; (7) uma fonte de aprendizado constante, utilizando as experiências para prevenir os danos futuros (CONECTAS, 2012).

Tais princípios e instrumentos, com efeito, se prestam a atender ao novo catalogo dos direitos humanos no contexto da sociedade globalizada, em que as formas de violação aos direitos humanos são potencializadas pelas transnacionalição da empresas e das relações de consumo que as eleva a escala planetária e originam   novas formas de opressão ao ser humano. Em virtude da força dos pactos globais entre empresas transnacionais e os Estados, para relativizar e, até mesmo, negar direitos humanos – ambiental, do trabalho – violando o piso mínimo estabelecido para a proteção da dignidade humana, em decorrência das parcas condições de desenvolvimento a que as pessoas e a economia estatal são constrangidas.

  1. AS RESPONSABILIDADES DAS EMPRESAS E DOS ESTADOS PARA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

 

Para Branco (2012, p. 266), o principal desafio na promoção dos direitos humanos no mundo globalizado consiste em reconciliar a economia à sua finalidade, num processo de funcionalização do direito empresarial e do direito econômico, para tanto, a lógica tradicional da economia deverá sofrer uma profunda transformação de modo a integrar a filosofia dos direitos humanos aos seus princípios e práticas, não só para atender as liberdades humanas – no sentido amplo –, mas também para manter sua finalidade egoística – percepção dos lucros.

Promover direitos humanos à escala global não será possível, nos dias que correm, nem contra a economia nem sem a economia. A lógica econômica converteu-se em paradigma da política de tal modo possante que, simplesmente, não faz qualquer sentido ignorá-la ou sequer evitá-la (BRANCO, 2012, p. 266).

Isto porque, dada a necessidade de recursos para a promoção e consecução dos direitos inerentes ao ser humanos há uma indispensável dimensão econômica nos direitos humanos, e, por outro lado, dada a finalidade da economia na consecução dos fins almejados por seus destinatários, há uma inafastável dimensão de direitos humanos na ciência econômica, pois se os indivíduos não puderem desfrutar de suas liberdades, a lógica do mercado não se sustenta (BRANCO, 2012, pp. 10; 41).

Para haver progresso na economia globalizada é necessária a sua construção sobre os pilares dos valores éticos e projetado ao futuro, incorporando um ideal coletivo, inclusivo para melhorar a vida das pessoas, “isto significa que não compete aos cidadãos adaptarem seus valores ao modelo da globalização, mas, sim, o modelo da globalização é que deve ser ajustado aos valores dos cidadãos” (BRANCO, 2012, p. 281).

E, para tanto, a promoção e proteção dos direitos dos humanos pelos Estados e pelo mercado9, nos termos propostos pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, reflete a necessidade na realidade das novas relações de poder e sua dimensão ética-solidária, nesse processo e para tal finalidade.

Com efeito, há a necessidade de efetivo compartilhamento da responsabilidade pela promoção, proteção e reparação aos Direitos Humanos no contexto da sociedade globalizada e dos novos reclames que, paulatinamente, se impõem.

Isto porque, a moldura criada pela realidade da deslocalização das empresas e da desterritorialização do controle estatal em virtude da transnacionalização do comércio e das relações humanas a ele atrelados acarretou reflexos em diversos pontos do globo terrestre, pois suas consequência são sentidas para além da localização geográfica dos acontecimentos.

Desta forma, surge um sentimento de que o mundo foi contraído e de que as barreiras espaciais já não mais são suficientes para a aplicação das medidas protetivas estatais e, assim, os reflexos das relações jurídicas, independente de sua origem ou destino, impactam na opinião pública global e no exercício dos direitos humanos reconhecidos universalmente e constitucionalizados internamente, tanto de forma positiva – na abertura do comércio e acesso aos bens de consumo -, quanto negativa, na relativização dos direitos humanos como parte do fomento ao capitalismo avançado propiciado pelo comércio transnacional.

Depreende-se, portanto, a necessidade de uma profunda alteração nas responsabilidades tanto dos Estados como das empresas para a execução do objetivo universal de proteção aos direitos inerentes ao ser humano, pois em razão das novas tensões e atores do poder há um adensamento da dignidade humana que reclama a abertura do catálogo do seu sistema protetivo global, para o qual os princípios orientadores para empresas e direitos humanos previstos nos parâmetros da ONU para proteger, respeitar e reparar se mostram resposta ao contexto da sociedade global.

Não obstante, tais princípios ainda não possuem densidade normativa ou, ao menos, natureza de soft law10, pois ainda não foram incorporados a qualquer documento internacional que vincule os detentores do poder global a sua observância.

Entretanto, é possível defender que que as alterações no paradigma da contratação global e das novas relações de opressão aos direitos humanos em razão dos pactos globais das empresas transnacionais justificam o dever de observância dos direitos humanos pelas empresas e os parâmetros para proteger, respeitar e reparar, tal como proposto pela Conselho de Direitos Humanos da ONU, em virtude da natureza de jus cogens dos direitos disciplinados no referido relatório. Desta forma, a iniciativa da ONU pode ser englobada como novo processo de funcionalização do direito em curso.

E, como consequência, a responsabilidade das empresas ao respeito aos direitos humanos deve abranger também a internalização dos custos necessários à prevenção e defesa de tais direitos, que originou novo processo de funcionalização do direito com o adensamento da dignidade humana, em razão dos reflexos negativos das atividades empresariais aos direitos humanos.

Para tanto, algumas estratégias podem ser adotadas pelos Estados para compartilhar a responsabilidade pela proteção aos direitos humanos em face das atividades empresariais a eles nocivas por meio das instrumentos já existentes e com a instituição de novos 11.

Neste sentido, avaliando os dois primeiros ensaios de Bobbio (2007, pp. 1-21; 23- 32), nos quais anuncia que as bases da alteração da perspectiva estruturalista do ordenamento jurídico – na qual a preocupação era identificar o direito e sua legitimação de acordo com sua estrutura formal – para sua dimensão funcionalista – na qual tal apreensão se volta às funções a atendimento às finalidades do direito – , e, a complementação entre a função repressiva do direito e sua função promocional, por meio das sanções positivas, é possível fundamentar a solução proposta no relatório ONU sobre empresa e direitos humanos em consonância com os princípios da ordem econômica nacional, pois senão vejamos.

Para separar as sanções sociais das jurídicas, Bobbio (2007) se pauta   nas duas principais teorias sobre a juridicidade das sanções, ou seja, (1) da institucionalização: norma instituída por um órgão competente; (2) da coação: sanção jurídica identificada como aquele modo de infringir um mal pela não observância do comando imperativo.

Ao analisar as duas teorias acima mencionadas, Bobbio (2007, p. 27) afirma que a teoria da sanção como instituição se mostra insuficiente para atender as necessidades na nova moldura mundial. Isto porque, as leis de incentivo, por si só, não atingem a finalidade da instituição da sanção promocional, pois as empresas podem, por não haver um temor de alguma reprimenda pelo descumprimento do comando, simplesmente deixar de observar a norma de conduta por não entender atrativo o prêmio ofertado pelo Estado.

De maneira que, a leitura feita pelo autor (BOBBIO, 2007, pp. 28-29), sobre a teoria da coação, em que observa que a esta não é, necessariamente, uma reação física a não observância normativa, explica que a coação na sanção positiva12 comporta gradações, para atender a finalidade de sua instituição e, portanto, seria complementar a teoria da instituição.

Assim, a sanção positiva tanto pode ser um prêmio, enquanto retribuição, por ter a empresa agido de acordo com as metas instituídas para sua instalação no país de acolhida, assim como poderá ser a utilização de um canal para uma facilitação ou uma obstacularização (encorajamento e desencorajamento) ao exercício da atividade empresária, em razão do respeito ou não aos direitos humanos 13.

O desafio que permanece é da atribuição e exigência das responsabilidades das empresas transnacionais quando estas pactuam com Estados em desenvolvimento ou sem desenvolvimento, para os quais o poder de barganha das empresas se sobrepõem as possibilidades de imposição de dever de respeito aos direitos humanos.

Nestes casos, os limites do exercício da soberania estatal (as vezes quase inexistente), que, em virtude das peculiaridades e das necessidades de cada Estado, faz com que as empresas continuem a exercer sua força por meio da imposição de seus pactos globais (para relativizar ou negar direitos humanos).

Por isso, se faz necessária a conversação global com extensão transversal sobre os limites às atividades das empresas transnacionais, assim como, da imposição de responsabilidades pelo respeito aos direitos humanos para atingir, em escala planetária a defesa dos direitos inerentes ao ser humano, no processo de funcionalização do direito de empresa de maneira global e transversal.

CONCLUSÃO

A mudança das relações humanas e comerciais globais, que se tornaram deslocalizadas e desterritorializadas, alteraram os paradigmas mundiais do controle e da proteção dos direitos inerentes ao ser humano.

Neste contexto, novas relações e tensões de poder surgem na sociedade economicamente globalizada entre Estados e Mercado. Assim, há um redimensionamento do papel da empresa em virtude das novas formas de violação dos direitos humanos nas relações transnacionais, ocasionadas pelas imposição das regras mercadológicas para relativizar e, até mesmo, negar os direitos inerentes ao ser humano (trabalho, consumo, entre outros).

Em decorrência dessas novas relações de opressão, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas encomendou um estudo sobre empresas e direitos humanos com a finalidade de traçar parâmetros para a proteção, respeito e reparação ao direitos humanos, com a   estipulação de   princípios orientadores para as empresas transnacionais e suas novas responsabilidades na moldura da sociedade global.

Em que pese as estratégias estatal já praticadas, com a instituição de sanções positivas e negativas na pactuação transnacional, o fato é que os Estados em desenvolvimento e sem desenvolvimento não possuem força e poder de barganha para impor limites às referidas atividades.

Com a transnacionalização da relações, tais violações se tornaram mais visíveis ao mundo que, em virtude de toda a mutação do sistema protetivo da dignidade humana, os reflexos de tais atividades são sentidos em maior velocidade e suas consequências são debatidas pela sociedade global.

Neste sentido, a universalização dos direitos humanos e o novo dimensionamento da dignidade humana reclamam a funcionalização do direito empresarial em escala global, para estabelecer um patamar mínimo de proteção,respeito e reparação aos direitos inerentes ao ser humano, independente do poder de barganha dos Estados de acolhida das empresas transnacionais com o compartilhamento das responsabilidades daí advindas entre os Estados de origem e de acolhida e as empresas transnacionais.

NOTAS

1 Conforme relatório PNUD, 2000: “Os direitos humanos — num mundo integrado — requerem justiça global. O modelo de responsabilidade centrado no Estado tem de ser estendido, incluindo as obrigações dos atores não estatais e as obrigações estatais além das fronteiras nacionais. A integração mundial está reduzindo o tempo e o espaço e corroendo as fronteiras nacionais. As vidas das pessoas são mais interdependentes. A autonomia do Estado está em declínio, uma vez que novas regras mundiais de comércio sujeitam as políticas nacionais e novos atores exercem maior influência. E na medida em que as privatizações avançam, as empresas e associações privadas têm maior impacto sobre as oportunidades econômicas das pessoas. A medida que o mundo se torna mais interdependente, tanto os Estados como os outros atores mundiais têm maiores obrigações” (PNUD, 2000, p. 13).

2 O termo desterritorialização é utilizado no presente estudo como resultado da derrocada do modelo do projeto da modernidade, ou seja, a retirada e ou relativização do controle estatal sobre as relações jurídicas uma vez que, neste contexto, elas se dão em escala global inviabilizando o controle jurídico por uma única soberania. Farias explica que tal compartilhamento de soberania e relativização do poder de controle é justificado na estratégia custo/benefício, pois a diversidade dos ordenamentos jurídicos incidentes nas relações jurídicas transnacionalizadas exigiria um aparato estatal capaz de suprir as necessidades das realidades sócio-econômicas complexas que a negociação global implica. De maneira que para preservar sua autoridade funcional não resta ao Estado opção outra senão a de deixar de disciplinar a matéria e até mesmo não intervir em tais relações para não atestar sua inefetividade regulacional e sua impotência de controle (1997).

3 Desta maneira, as empresas transnacionais passaram a operar sem oposição e em escala mundial e com o poder de decisão na possibilidade do deslocamento de seus investimentos, ou seja, sua posição e força de mercado permitem criar confrontos entre os Estados nacionais e locais para realizarem com elas “pactos globais” com a finalidade escolher aquele Estado que ofereça melhores condições de instalação, que possuam mão-de-obra barata, com menor recolhimento de impostos e maior oferta de subsídios.

4 Por empresa transnacional se entende aquela exerce suas atividades para além das fronteiras estatais e que interfere nos meios e modos dos locais nos quais são exercidas (BECK, 1999). E, ainda, no mesmo sentido do conceito de sociedade transnacional de Campos (1989, p. 438), que descreve aquela noção que “apunta al conjunto social que resulta de las interacciones directas entre actores pertenecientes a sociedades de· distintos Estados; esos actores son individuos o entidades cuyas acciones, eventual o permanentemente, trascienden las fronteras de sus Estados”.

5 Ainda no Relatório PNUD de 2000 essa preocupação já era presente e, note-se que anos depois a problemática se arrasta, ainda que com medidas autorregulatórias das empresas de ética e responsabilidade empresarial para proteção aos Direitos Humanos, percebe-se que tais práticas ainda estão longe do ideal reclamado para a proteção integral do ser humano na sociedade global contemporânea. Neste sentido, “As empresas globais podem ter um enorme impacto sobre os direitos humanos — nas suas práticas de emprego, no seu impacto ambiental, no seu apoio a regimes corruptos ou na pressão que exercem por mudanças de políticas. Contudo, as leis internacionais responsabilizam os Estados e não as empresas. É verdade que muitas empresas têm adotado códigos de conduta e políticas de responsabilidade social, sobretudo em resposta à pressão pública — um bom primeiro passo. Mas muitas não cumprem os padrões de direitos humanos ou carecem de medidas para sua implementação e ainda de fiscalização e auditorias independentes” (PNUD, 2000, p. 14).

6 Neste sentido Barros (2012, p. 16), em seu estudo sobre deslocamento das empresas perigosas aponta a dicotomia entre os ganhos socioeconômicos e as perdas ambientais em algumas atividades decorrentes de investimento estrangeiro de empresas perigosas nos países em desenvolvimento que as acolhe em razão dos pactos globais, observando que as ocorrências das tragédias em razão de acidentes industriais “alertam para a urgência de uma nova ordem jurídica internacional: idônea para responder eficientemente às externalidades negativas da globalização (na deslocalização das indústrias perigosas) e, perante as forças de mercado sem freio, oferecendo mecanismos efetivos de proteção aos indivíduos”.

7 Bobbio (2007, pp. 1-21), em sua obra ‘Da estrutura à função’, levanta a questão da função promocional do direito, que para além da função repressiva do ordenamento jurídico, em suas normas negativas e seus comandos imperativos, alcançar a função positiva do ordenamento com a finalidade de criar uma estratégia positiva para encorajar a observância das normas de conduta mediante sanções promocionais (incentivos fiscais e de liberdade de gestão). Não como critério de exclusão, mas sim como complemento da função preventiva e repressiva, com a promocional.

8 Por funcionalização do direito entende-se o processo de atribuição de uma função aos institutos jurídicos para que atendam as necessidades humanas, na declaração, promoção e defesa dos parâmetros mínimos   para o sistema protetivo da dignidade humana. Assim, para além da estruturação do sistema jurídico (legitimação), na delimitação das competências e atribuições para o exercício dos direitos e deveres, no processo de funcionalização do direito ao sistema jurídico deve ser vinculado a uma finalidade, que deva refletir uma meta a ser alcançada em prol do desenvolvimento integral do ser humano.

9 Benacchio define o mercado no sentido que aqui nos filiamos, ou seja, como “uma escolha política e jurídica da sociedade, não é uma realidade fática preexistente ao Direito. O mercado é um instituto jurídico, um conjunto de relações governadas pelo Direito”. E conclui que “o mercado não é composto apenas por bens e contratos, regulados pelo Direito, mas, sobretudo, por seres humanos, a finalidade do mercado é atender às necessidades humanas” (2011, p. 195).

10 Menezes define soft law como aqueles “documentos derivados e extraídos de foros internacionais e constituídos a partir deles, que possuem caráter declaratório, sem obrigatoriedade e que não vinculam os Estados ao cumprimento expresso de seus dispositivos”, mas que acabam, na prática, por influenciar a normatização dos Estados, por conterem verdadeiros mandados morais e éticos (2005, p. 142)

11 Como exemplo, no Brasil, a funcionalização do direito de empresa caminha no mesmo sentido como se verifica dos ditames que regulam a ordem economica nacional, uma vez que possui como fundamentos a valorização do trabalho e da livre iniciativa, a função social da propriedade e da empresa, assim como a defesa do consumidor, com densidade normativa de direitos fundamentais, pois previstos na Constituição Federal.

12 Desta forma, Bobbio explica que “a sanção jurídica não consiste, diferentemente da sanção social, no uso da força, (…), mas consiste, sim, em uma reação à violação, qualquer que seja, mesmo econômica, social ou moral, que é garantida, em última instância, pelo uso da força. (…) Enquanto pura e simplesmente reduzir a a sanção jurídica à coação nos impede de inserir as sanções positivas entre sanções jurídicas, considerar a coação como garantia do cumprimento da sanção nos permite considerar como sanção jurídica também as sanções positivas que suscitam para o destinatário do prêmio uma pretensão ao cumprimento, também protegida mediante recurso à força organizada dos poderes públicos” (2007, pp. 28-29).

13 Para a técnica de facilitação, para a qual entende Bobbio (2007, pp. 30-31) “o conjunto de expedientes com os quais um grupo social organizado exerce um determinado tipo de controle sobre os comportamentos de seus membros” é considerada como uma medida de controle social indireta, uma vez que “dificultam ou facilitam determinados comportamentos, por meio de previsão de retribuição ou reparação”. E, pondera, ainda, que tanto as medidas de controle diretas – aquelas com a finalidade de obter um comportamento desejado – com as indiretas constituem um “continuum, e, portanto, não é possível estabelecer limites nítidos entre um tipo e outro”.

 

REFERÊNCIAS

BARROS, Ana Sofia. Multinacionais e a deslocalização de indústrias perigosas: ensaio sobre a proteção dos direitos humanos perante o dano ambiental. Lisboa: Coimbra Editora, 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização e as consequências humanas. Tradução Marcus Pencel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

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